Um dia, ainda criança, perguntei, pai, você é feliz? Ele demorou um pouco, ficou pensativo, surpreso até, e respondeu, filha, feliz, feliz, não sou; tenho momentos de felicidade, mas feliz mesmo não sou. Por que filha? Nada não pai, só para saber.
Eu fiquei triste e me senti a pior filha do mundo, pois não era capaz de fazer meu pai feliz. Mas com o tempo fui crescendo e entendendo melhor das coisas do mundo e percebi que ninguém podia fazer ninguém feliz, mas sim proporcionar momentos de felicidade, como meu pai me disse naquele dia. Desde então passei a procurar no olhar de meu pai esses momentos de felicidade.
Quando eu estudava, menina alvoroçada que era, ao receber meu boletim com as notas da escola enchia-me de esperança e ansiava por encontrar o momento de felicidade de meu pai. Eu corria para casa com alegria incontida e ficava esperando ele chegar do trabalho. Assim que eu ouvia o barulho da buzina do carro velho dele, corria e abria o portão, com o boletim na mão. Mal ele fechava a porta do carro e eu fechava o portão da garagem, eu estendia a mão segurando a folha de papel com as notas, pai, meu boletim, está bom? Para ver um momento de felicidade de meu pai, eu estudava bastante e tirava as melhores notas. Mas ele apenas olhava rapidamente e dizia está bom sim, sem o brilho nos olhos que eu tanto procurava, e logo seguia para dentro de casa. Talvez ele estivesse sempre cansado e preocupado e por isso não prestava muita atenção e não percebia que minhas notas no papel eram minhas horas de esforço e dedicação para deixa-lo orgulhoso. Mas eu não desistia e a cada boletim renovava as esperanças.
Os anos passaram e eu terminei a escola, graduando-me com destaque. Chegara a hora do vestibular. Eu não sabia muito bem o que queria fazer da vida, mas, na ânsia de proporcionar um momento de felicidade para meu pai, resolvi prestar prova para direito, pois ele dizia que sempre queria ter um filho “doutor”, e como eu era filha única, sabia que ele ficaria orgulhoso e feliz.
Passei em primeiro lugar na universidade pública mais concorrida do estado. Eu estava em casa quando minha tia ligou avisando que eu havia sido aprovada. Imediatamente fui abraçada por minha mãe, enquanto buscava os olhos de meu pai. Ele disse, passou? Vou buscar as cervejas para comemorar. Nem um abraço ele me deu. Saiu para comprar cerveja. Logo a casa estava repleta de familiares, todos bebendo e sorrindo, enquanto eu sentia um arrepio frio e uma vontade chorar, vendo meu pai sorrir por causa da bebida e da festa. Mas continuei sem ver uma nesga de brilho em seus olhos, já embriagados pelo álcool. Mas não desisti. Dediquei-me com afinco à faculdade e mantive meu excelente desempenho, destacando-me ao longo do curso.
Minha formatura ocorreria em uma série de cerimonias que duraria três dias, sendo um dia para a missa, outro para a colação de grau e outro para o baile. Meu pai chegou e me perguntou, filha, dos três dias qual você quer que eu vá? Só posso ir em um dia, preciso trabalhar. Fui para o quarto e chorei com dor, com muita dor naquele dia. Pouco tempo após a formatura me casei com meu noivo e três anos após tive meu primeiro filho. E quando informei a meu pai minha intenção de batizá-lo com o nome dele ele disse, filha, não faça isso, meu nome é feio e ele vai sofrer na escola. Confesso que depois desse episódio eu desisti. Passei em um grande e concorrido concurso federal, tive mais dois filhos e segui minha vida, sem alimentar mais a esperança de ver, ao menos por um instante, um brilho de felicidade nos olhos de meu pai.
A vida seguiu seu curso natural. Meu pai envelheceu, adoeceu, e quando estava em seus últimos dias de vida, deitado no leito do hospital, pediu para falar comigo a sós. Olhou em meus olhos e me disse, reunindo suas últimas energias, com a voz entrecortada e fraquinha de dar dó, filha, eu sei que você passou sua vida inteira tentando me agradar, esperando que algum dia eu te abraçasse ou te beijasse e mostrasse minha felicidade, mas o pai não sabe ser assim. A minha vida foi muito difícil, dura e sofrida. Eu apanhava de meu pai, alcoólatra, todos os dias e logo cedo ele me pôs para trabalhar, serviço pesado. Minha mãe foi uma coitada, teve tantos filhos que morreu cedo. Eu nunca tive contato com o lado bonito da vida e me tornei esse homem cru que só pensava em trabalhar para sobreviver. Essas marcas ficaram para sempre dentro de mim, e por isso esse meu jeito de ser meio distante e frio. Eu conheci sua mãe e juntos conseguimos dar algo de bom para você, a maior prova de que cada suor de meu rosto valeu a pena. Mas eu juro que fui o melhor pai que eu poderia ser. Mesmo que não fosse o que você esperava, eu te dei o melhor que eu poderia de mim em cada momento de tua vida. E te garanto filha, a cada conquista tua meu coração não se aguentava de tanto orgulho e felicidade. E agora que estou perto de morrer criei coragem para te falar tudo isso. Você foi, filha, desde o dia em que você nasceu, o maior momento de felicidade de toda minha vida…
Nesse momento eu vi o que sempre desejei, emocionada pelas palavras do homem sem estudos e humilde que fora meu pai, meu maior orgulho. Eu vi. Os olhos fundos e ressecados de meu pai, já quase cadavéricos, não conseguiram esconder o brilho de seu olhar, uma luz tão forte que veio lá de dentro e se acomodou em meu coração, finalmente em paz.