O dissenso da maconha
No Brasil, o debate ainda está acirrado e não há consenso entre os defensores de opiniões pró e contra leis que regulamentem o uso da erva
Legalizar, liberar, descriminalizar ou não a maconha não é uma questão simples. Há vários anos se discute a respeito da planta cannabis utilizada para fins medicinais, meramente “recreativos”, e o uso de seus princípios ativos como medicamento para males diversificados. Nos Estados Unidos e em outros países, a discussão já está adiantada e resultou na liberação tanto da erva para fins medicinais quanto de remédios de canabinoides. Um dos jornais mais influentes do mundo, o The New York Times, este ano chegou a assumir a posição de defesa do uso recreacional e medicinal da maconha.
No Brasil, muito ainda se discute e muitos argumentos são apresentados, contra e a favor, por representantes de várias classes profissionais. No recente congresso da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), foi realizado um debate sobre a legalização da maconha que atraiu mais pessoas do que os organizadores esperavam. O assunto e a presença de conhecidos pesquisadores defensores e contrários ao uso da maconha fizeram com que as pessoas continuassem a entrar no auditório e se acomodassem nas escadas e pelo chão do local.
Participaram da mesa de discussões o vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Emmanuel Fortes, o presidente da ABP, Antônio Geraldo da Silva, o coordenador da Comissão de Dependência Química da ABP, Ronaldo Laranjeira, o deputado federal Osmar Terra, o psiquiatra Valentim Gentil, Elisaldo Carlini e Marcos Susskind, da Organização Não Governamental (ONG) Jacs Brasil.
Argumentos a favor
Elisaldo Luiz de Araújo Carlini
O professor doutor Elisaldo Luiz de Araújo Carlini, em outras ocasiões, tem deixado claro que não é a favor da legalização e do uso recreacional da maconha, mas a favor de sua descriminalização e de seu uso medicinal. Ele chamou a atenção ao perigo de se levar em consideração a ideologia e não somente os fatos, quando se defende ou se contraria o uso da maconha como remédio citando o artigo “Como a ideologia modula a evidência e a política sobre drogas: o que nós conhecemos sobre a maconha e o que nós deveríamos saber”, publicado em 2009 pela revista inglesa mais influente no campo da dependência química, a Addiction.
Carlini ainda faz um levantamento que mostra um parâmetro de alternância de posicionamento sobre o uso da maconha em diversas instituições, brasileiras e internacionais, que regulam a prática médica. Como exemplo citou que, em 1980, o Jornal Brasileiro de Psiquiatria, em anúncio editorial, fez uma comparação que, na época, cinco dias de detenção por uso de maconha seria mais nocivo do que cinco anos de uso continuado da droga.
Continuando com esse gancho, ele cita estudos mais recentes realizados nos Estados Unidos sobre a violência dentro da prisão e correlaciona com o número de jovens presos por porte de maconha no mesmo período. “De acordo com a Organização para o Estupro de Presos, 290 mil homens são vitimados todos os anos nos EUA, 192 mil vítimas de penetração, as vítimas são majoritariamente jovens, de pequena estatura, não violentos, primários e de classe média. 77 mil transgressores da lei por posse de maconha estavam na prisão. Imaginem o sofrimento de milhares desses jovens sofrendo a pressão da nossa lei.”
Sobre esse assunto, ele pontua, em entrevista ao médico Drauzio Varella, que esses jovens presos, que muitas vezes não cometeram outro crime, ficam marcados por uma ficha criminal que os prejudica posteriormente a conseguir emprego. E ainda considera: “O importante não é punir um comportamento. É corrigi-lo. Para tanto, deve existir um programa eficiente de prevenção e de educação para que a pessoa evite consumir essa ou qualquer outra droga”.
Para Carlini, a história demonstra que o uso da maconha medicinal era coisa séria: seu uso foi registrado pela primeira vez há cerca de cinco mil anos, por um imperador chinês, e no século IXX podia ser usada na medicina contra vários males, receitada pelos melhores médicos da época. Isso, segundo ele, e mais as dezenas de trabalhos, livros e estudos publicados ao longo do tempo que alegam os efeitos benéficos da maconha para as dores neuropáticas e miopáticas, não pode ser desconsiderado.
“Esclerose múltipla, maconha para o uso médico nesses casos é reconhecido por Ministérios da Saúde de vários países. Em 2010, a ONU reconheceu o uso medicinal da maconha nos países que resolvem fazer uma agência medicinal da maconha e o que o país precisa fazer é que o Ministério da Saúde tenha uma postura de reconhecer e aceitar uma agência da cannabis medicinal que faça o controle da plantação, da coleta, da venda e da prescrição médica”, pontua o pesquisador.
Contrariando outros pesquisadores, Carlini diz que não há evidências científicas suficientes da relação entre o uso da maconha e os sintomas positivos e negativos da esquizofrenia. Na entrevista a Drauzio Varella, ele ainda comenta que a questão da dependência pode ser subjetiva, já que há casos na história médica de dependência a cenoura, com relatos de crises de abstinência, assim como a placebo.
E sobre o porquê de sua defesa à maconha medicinal, ele esclarece que não há medicamentos eficazes em 100% dos pacientes, e que mesmo a morfina pode não oferecer alívio para todos os quadros dolorosos, considerando assim não fazer sentido restringir seu uso na população que poderia beneficiar-se dela quando outras drogas não surtem efeito. Ele cita casos de paciente em tratamento quimioterápico contra o câncer que tem menos náuseas e vômitos, e de pessoas caquéticas por causa da aids e câncer que têm o apetite desperto por causa da maconha.
Outro que tem lutado a favor da descriminalização da maconha é o ex-presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso, hoje à frente da Comissão Global de Política sobre Drogas, que reúne também 22 ex-presidentes de outros países. Para ele, de acordo com artigos e entrevistas publicadas, o “proibicionismo fracassou em muitos níveis” e o modelo de repressão desperdiça recursos públicos com poucos resultados para a segurança e saúde públicas.
De acordo com o ex-presidente, a regulação da maconha ajudará a reduzir o crime organizado e a proteger a saúde e segurança das pessoas. E ainda cita o exemplo do Uruguai, que mexeu nas leis para flexibilizar a questão da maconha, como digno de consideração. Ainda lembra que o modelo de repressão possivelmente empurra os usuários para o mercado criminoso, e que este não impede a venda para menores de idade. Sobre esse modelo, ele escreve que “não se preocupa com indivíduos que desenvolvem o uso problemático ou certifica a qualidade sanitária da substância, envolvendo a cadeia de uso em um contexto de violência e criminalidade”.
Fernando Henrique ainda discorre, em um de seus artigos, a respeito dos ganhos que a criminalidade tem com a maconha, que podem ser gastos na compra de armas, para corromper forças de segurança, para financiar quadrilhas criminosas e que seria um benefício retirar recursos do crime organizado. “Tais preocupações não são derivadas do consumo de drogas, mas consequências de uma política que ignora as condições do mundo real”, escreve.
O Canabidiol e as inovações sobre a maconha
De tudo o que vem sendo discutido a respeito da maconha, o que parece ter recebido mais atenção dos especialistas de várias áreas e tem sido ponto de consenso entre vários deles é o estudo e o uso de Canabidiol, produzido por indústrias farmacêuticas, no tratamento de várias doenças. Atualmente, a legislação brasileira não permite a fabricação ou a venda destes compostos, porém permite sua importação perante alguns critérios especiais.
Juliano Oliveira Silva, 39 anos, é administrador com especialização em Marketing e Gestão da Saúde Pública e Privada, diretor da Anellus Saúde. Ele realiza trabalho voluntário na Ispor, uma entidade sem fins lucrativos que tem como objetivo estabelecer o conceito sobre o tema, as melhores práticas científicas e disseminar este conhecimento estruturando o processo de tomada de decisão na ATS – Avaliação de Tecnologia em Saúde. Juliano tem ajudado famílias na importação de remédios à base de canabinoides.
Ele explica que sua relação com o processo de conseguir os remédios se iniciou com a necessidade de ajudar a família, já que dispunha de conhecimento em submissão para liberação da comercialização de produtos para saúde no Brasil (Anvisa) e padronização na lista do Ministério da Saúde (Conitec/MS). “Minha prima segunda, de três anos, filha da Anabella Sócrates, tem uma síndrome neorocutânea e já fez uso de todo artesanal terapêutico disponível no Brasil e no exterior, inclusive cirurgia retirando parte do cérebro, sem controle das crises epiléticas. A partir da prescrição médica, me senti na obrigação de ajudá-los com a parte burocrática, para liberação legal para importação na Anvisa e quanto ao desembaraço alfandegário para o Hemp Oil [nome comercial de um Canabidiol chegar logo”, esclarece.
Juliano explica que é muito complicado ainda vencer a burocracia para conseguir importar o Canabidiol, porque o medicamento ainda precisa de mais estudos para obter aceitação nas agências reguladoras. “Entretanto a prática tem atropelado a ciência, pois estes pacientes necessitam muito de um produto que controle a epilepsias refratárias e o Canabidiol tem se mostrado eficaz”, afirma.
Para iniciar o processo de importação é necessário: prescrição médica, autorização da Anvisa, receita médica (categoria C1 – duas vias Medicamento de Controle Especial), laudo médico (CID – Código Internacional da Doença, Nome da doença, Justificativa para uso do produto não registrado no Brasil, frente aos existentes), termo de responsabilidade/esclarecimento para utilização excepcional de medicamentos sujeitos a controle especial, formulário de solicitação de importação excepcional de medicamentos sujeitos a controle especial.
Depois de conseguir comprar, é preciso ainda outro processo para o medicamento chegar ao Brasil e, posteriormente, à cidade de destino. É o desembaraço alfandegário, que tem custos e também depende de certa burocracia. Juliano esclarece que é preciso desmistificar o uso do remédio e desvinculá-lo de sua planta de origem, a maconha. “Quando um grande laboratório farmacêutico desenvolver estudos robustos e conclusivos, padronizar a produção e os benefícios aparecerem, as coisas irão ficar mais claras e toda esta polêmica, confusão com a maconha será desfeita”, comenta.
Ele diz esperar que a Anvisa tire o Canabidiol da lista de controle especial, relacionado a produtos da portaria 344, medicamentos psicotrópicos e entorpecentes, que faz parte de um acordo de controle mundial, cujo uso indevido e não controlado pode favorecer o tráfico. “Acredito também que a Anvisa deveria ser mais rápida em reclassificar logo este produto, regulamentando para comercialização, facilitando a entrada legal através de importação por pessoa jurídica”, conta.
Juliano também lembra que outra forma de obter o tratamento, desde que haja prescrição médica criteriosa, é através da chamada Judicialização da Saúde. Esse processo é respaldado pela Constituição Federal e faz uso das vias judiciais para obter acesso a tratamentos desejados, pagos pelo governo, quando não são ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou Cobertura dos Planos de Saúde. “O médico prescreve, o paciente entra na Justiça contra a prefeitura, Estado ou União (dois últimos mais comuns), e o juiz determina a compra. A SES [Secretaria de Estado de Saúde] ou Ministério da Saúde vai fazer a compra”, explica.
No último dia 30 de setembro, uma família goiana ganhou na Justiça o direito à importação do Canabidiol. A decisão do desembargador Itamar de Lima obrigava o Estado a fornecer o remédio ao paciente.
No mês passado várias notícias foram divulgadas a respeito do medicamento e da maconha. No dia 13 de outubro, um balanço da Anvisa mostrava que dos 167 pedidos de importação do Canabidiol (CDB), só 113 haviam sido aprovados e o restante estava sendo analisado pela área técnica. Sete dias depois, no dia 20, a Anvisa proibiu o uso de 14 substâncias à base de canabinoides sintéticos, que ainda não eram conhecidos no Brasil e que haviam sido identificados pela Polícia Federal. Pela Resolução 63/14, elas entraram na lista de substâncias sujeitas a controle especial da Portaria 344/98.
Já no dia 29 de outubro, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou relatório que muda a lei sobre drogas. Apesar de ser um avanço, o relatório ainda deve tramitar no Congresso antes de chegar à sanção ou veto presidencial. No texto, de Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), as alterações se referiam à importação de derivados da maconha para uso medicinal e, também, à diferenciação entre usuários e traficantes. Esta alteração pode liberar da prisão quem porta maconha para uso de até cinco dias, em volume ainda a ser calculado pela Anvisa. A medida foi comemorada porque essa diferenciação ficava a cargo de um juiz, e alguns casos poderiam ter interferências de estereótipos. Conforme os especialistas, duas pessoas flagradas com a mesma quantidade de maconha poderiam ter julgamentos diferentes, de acordo com aparências, por exemplo, se fosse negro ou pobre poderia ser tomado por traficante, ao passo de que se fosse branco ou da classe média, seria identificado como usuário. No dia 28, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu habeas corpus a um condenado por tráfico flagrado com 1,5 grama de maconha que havia sido condenado a quatro anos e dois meses de reclusão. Para o relator do processo, o ministro Gilmar Mendes, a quantidade de drogas era pequena. O advogado sustentou a tese de que o acusado era usuário.
Debatedores
Ronaldo Laranjeira
É psiquiatra, Ph.D pela Universidade de Londres no setor de Dependência Química, professor de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coordenador da Uniad (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas) da Unifesp e o principal investigador do Instituto Nacional de Políticas do Álcool e Drogas (Inpad. O especialista é o organizador do II Lenad (Levantamento Nacional de Álcool e Drogas), estudo populacional publicado em 2012 sobre como os brasileiros encaram esse problema.
Elisaldo Carlini
Professor doutor, graduado em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo (1957) e mestrado em Psicofarmacologia – Yale University (1962). Atualmente é da Universidade Federal de São Paulo, membro do Expert Advisory Panel on Drug Dependence and Alcohol Problems (7º Mandato) – World Health Organization (WHO), ex-membro do International Narcotic Control Board (INCB), eleito pelo Conselho Econômico Social das Nações Unidas, parecerista do Phytotherapy Research e Journal of Ethnopharmacology, coordenador da Câmara de Assessoramento Técnico Científico da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad).
Valentim Gentil
Médico pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (1970), Ph.D. (Doutorado) pelo Institute of Psychiatry, Universidade de Londres (1976), Livre-Docente em Psiquiatria (1987) e professor titular de Psiquiatria pela FMUSP (1994). Foi docente do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (1971-1986) e presidiu o Conselho Diretor do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP (1994-2006), do qual é membro permanente. Foi chefe do Departamento de Psiquiatria da FMUSP (1992-1996 e 2008- 2010) e Visiting professor do Institute of Psychiatry, Kings College (Londres).
Fernando Henrique
Foi presidente do Brasil de 1995 a 2003. Sociólogo graduado na Universidade de São Paulo, influente intelectual na análise de temas como os amplos processos de mudança social, desenvolvimento e dependência, democracia e reforma do Estado. Senador pelo Estado de São Paulo, foi Membro Fundador do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) em 1988. Entre suas funções atuais, está à frente da Comissão Global de Política sobre Drogas, que reúne 22 ex-presidentes de outros países.
Cristóvam Buarque
É engenheiro mecânico, economista, professor e político. Doutor em Economia pela Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne (1973), foi reitor da Universidade de Brasília, governador do Distrito Federal e Ministro da Educação. É senador do Distrito Federal, com mandato até 2018. É relator texto sobre a regulamentação do uso recreativo, medicinal e industrial da maconha, da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH).
Argumentos Contra
Ronaldo Laranjeira
Para defender sua posição contrária, o psiquiatra Ronaldo Laranjeira tem vários argumentos que tentam derrubar a argumentação favorável, e ainda números epidemiológicos contra a maconha. Ele informa que o Brasil, de acordo com o II Lenad (Levantamento Nacional de Álcool e Drogas), realizado em 2012, não faz parte dos países em que mais se utiliza a erva no mundo, somente 3%, contra 14% no Canadá, 13% da Nova Zelândia e 10% dos EUA. Para ele, com a legalização o aumento no consumo será inevitável, podendo ser notado também nas questões de saúde pública.
Outro de seus argumentos é o de que a população brasileira é contra a legalização da maconha, conforme os dados do levantamento. “Dos entrevistados sobre a legalização da maconha, apenas 11% foram a favor. 28 milhões de pessoas convivem com um dependente químico – sendo este um problema de saúde pública”, afirma.
Para ele, o argumento de que o Brasil foi derrotado pelas drogas não é verdadeiro. “É um debate muito ideologizado, existe um discurso do derrotismo. No Brasil nós não fomos derrotados em nada, nós nunca tivemos uma política de drogas compatível com a natureza e dimensão do problema. Nunca fizemos uma grande força-tarefa, uma política comunitária, social de prevenção e depois fomos derrotados”, considera.
O pesquisador ainda argumenta que a maconha faz mal e causa dependência, que afeta o desenvolvimento cerebral, a memória e a cognição, o sistema de motivação, o apetite e vários sistemas químicos cerebrais. “Os estudos têm mostrado queda de até sete pontos no coeficiente de inteligência, queda de memória e função executiva na evolução de 25 anos de grupos de adolescentes usuários de maconha”, informa.
Ele também considera que a maconha atualmente é muito mais forte e diferente da utilizada nos anos de 1960, e assim a dependência é mais fácil de acontecer. Para Laranjeira, um usuário de maconha também ficaria mais dependente do Estado, do dinheiro do Estado, porque vai ficar mais desempregado, terá menos ganho pessoal e não vai conseguir terminar a faculdade no mesmo tempo que os não usuários, tendo o pior prognóstico do ponto de vista social.
“Maconha não é remédio. Eu não conheço nenhuma forma de remédio que você possa fumar e ter um efeito terapêutico. A medicina não evolui assim. A medicina evolui sintetizando formas ou substâncias. Com o ópio foi assim. Dele foram derivadas substâncias que podem ser usadas terapeuticamente. No caso da maconha também – o Canabidiol pode ser usado terapeuticamente”, diz esclarecendo outra posição que tem a respeito do uso medicinal da maconha.
O psiquiatra expõe ainda que no Colorado, nos EUA, a legalização da maconha tem gerado uma indústria, a Big Marijuana, aos moldes da indústria do cigarro e do álcool, que para ele geram os piores problemas de saúde pública. Para ele, o efeito da legalização gera necessidades de mercado e inovações como “uma espécie de nutella que contém THC, soft drinks com maconha, vários tipos de pirulito de maconha, cereal matinal – com Michael Phelps fazendo propaganda – com maconha, Omega3 com maconha, chocolates com alta concentração de HC, com efeito significativo (crianças já foram hospitalizadas por ter consumido esses produtos)”.
Ele ainda expõe que, conforme estudos, a legalização da maconha não acabará com o tráfico, porque a porcentagem de ganho que o tráfico tem com ela seria de apenas 20%, e que eles não deixariam de entregar um produto mais barato e sem restrições legais, como vender para menores de idade. Também argumenta que a maconha não trará dinheiro para o governo, tendo em vista os dados sobre a legalização nos EUA, e que esse dinheiro não seria suficiente para sobrepor o custo social advindo desta abertura às drogas.
Ronaldo Laranjeira também diz ver com descrédito a defesa que se faz do assunto, o que chama de lobby da maconha. “Um dos argumentos utilizados agora para a legalização da maconha era muito usado no início da popularização do tabaco, nos anos 50, de que era relaxante. Havia propaganda de médicos recomendando o uso de cigarros para as pessoas ficarem mais relaxadas, o que se repete hoje com o lobby da maconha”.
Valentim Gentil
Outro pesquisador, também psiquiatra, que apresenta argumentação contrária à legalização da maconha é Valentim Gentil. Para ele, é impossível, por exemplo, fazer um plebiscito sobre o tema, enquanto as pessoas não estiverem mais informadas e que a decisão sobre legalizar ou não, não pode estar a cargo apenas dos médicos, mas de toda a sociedade. Gentil diz que a sociedade é ávida por consumo de drogas desde “Noé, pelo menos”, mas que é preciso pensar nas consequências desse consumo.
Como risco, ele cita a possibilidade de o usuário desenvolver uma psicose esquizofrênica, conhecida anteriormente como demência precoce. Ele cita um estudo realizado com 50 mil suecos, acompanhados desde seu alistamento entre 1960-70, quando tinham 18 anos. Depois de 15 anos foi feita uma reavaliação do grupo e quem havia usado maconha 50 vezes antes dos 18 anos tinha seis vezes mais risco de ser internado por surto esquizofrênico do que os demais. Depois de excluídas outras variáveis, o risco ficou em 2,3%. Em 2011, após 35 anos, os suecos voltaram a ser reavaliados, com novas técnicas de controle, as estimativas de risco chegaram a 3,7% para esquizofrenia, 2,2% para psicoses breves e duas vezes para psicoses não afetivas. Ele também explica que o uso de maconha pode antecipar o surgimento desses quadros, além de poder gerar dano cognitivo irreversível, falta de memória, problemas nas funções executivas, comportamentos estranhos e isolamento social. “Eu sei que a maior parte das pessoas que fumam maconha não fica nem demente nem esquizofrênico. Mas, 5 mil precisam parar de fumar maconha para um não ficar esquizofrênico. Hoje temos 200 milhões de pessoas fumando maconha. Façam as contas”, pondera.
Para Gentil, outro problema grave, não no campo da psiquiatria, mas da medicina geral, é que o consumo da maconha poderia levar à morte súbita e outros problemas de saúde, como cardiovasculares, já que nos EUA somente em 2012 teriam sido realizados mais de 10 mil atendimentos médicos de emergência por causa do uso de maconha. “Não é perigosa somente do ponto de vista cognitivo, de psicose, de pânico, de ansiedade, de prejuízos para a escolaridade – é uma coisa que pode ser letal”, afirma e ainda considera que não há a possibilidade de pedir para as pessoas esperarem para fumar maconha após os 25 anos, quando o cérebro amadureceu o suficiente, para não correrem perigo.
Ele ainda informa que nos EUA menos de 2% dos usuários de maconha medicinal têm problemas graves como HIV, câncer, glaucoma, esclerose múltipla e que a maioria tem dores de cabeça, nas costas e falta de apetite. Para o psiquiatra, fumar maconha como remédio é inconcebível, porque não se pode falar em maconha medicinal, não se pode falar em ópio medicinal e porque a maconha tem 400 substâncias, 60 canabinoides e impurezas e é plantada em lugares diferentes, sem controle de qualidade, elas terão concentrações diferentes dessas substâncias e princípios ativos. “Se existe algum papel para as drogas canabinoides não é na maconha medicinal como preparação de cannabis, e sim em compostos específicos que não podem ser confundidos com preparações não processadas da planta”, diz.
Valentim Gentil ainda se coloca contra a atitude de Fernando Henrique Cardoso e outros que defendem a maconha, por entender que atitudes assim, principalmente para quem não tem informações suficientes, passam a mensagem de que a maconha não faria mal, e diminuindo a percepção de risco, o consumo aumenta, de acordo com pesquisas. “Legalização, descriminalização e liberação. Seguindo o que diz FHC, a gente não vai liberar, vai regulamentar, o que levaria 10 anos para acontecer. O problema é que não há como regulamentar a pornografia infantil, o contrabando, as contravenções. Para regulamentar tem que legalizar. Regulamentar e liberar tem uma diferença pequena”, comenta.
A Associação Brasileira de Psiquiatria – ABP também se manifestou contra a legalização em um artigo recente. Utilizou 10 argumentos para tal: falta de estrutura para o tratamento de dependentes; maconha como sendo mais danosa à saúde que o cigarro; alto risco e impacto no desenvolvimento dos jovens – dos 12 aos 23, o cérebro está em pleno desenvolvimento; maconha causa prejuízo a diversos órgãos e sistemas humanos; uso terapêutico ainda está em estudo e basta cumprir as exigências legais já existentes para conseguir esse uso; não impacta na diminuição da violência; ineficiência no controle de outras drogas como álcool e cigarro, no caso a compra por menores; sem respaldo na mais influente agência reguladora do mundo, a FDA (Food and Drug Administration), ressalta-se nesse item a opinião de que “a legalização da maconha para uso medicinal é indefensável cientificamente e só parece servir para justificar a legalização para o uso recreativo”; desconhecimento do impacto que a maconha pode causar na estrutura psíquica do usuário; e a maioria dos brasileiros ser contra a legalização.
Problema
Várias discussões têm sido realizadas no Brasil a respeito da regulamentação do uso recreativo, medicinal e industrial da maconha, também por meio da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), com o objetivo de fomentar as informações sobre o tema que pode vir a se transformar ou não em projeto de lei uma sugestão popular. O senador Cristóvam Buarque (PDT-DF) ficou responsável por elaborar o relatório que irá sugerir a tramitação ou não do projeto. O texto original enviado por meio do Portal e-Cidadania (na internet), quando chegou a 20 mil assinaturas de apoio, prevê “o cultivo caseiro, o registro de clubes de cultivadores, o licenciamento de estabelecimentos de cultivo e de venda de maconha no atacado e no varejo e a regularização do uso medicinal”.
O senador tem participado de várias reuniões sobre o tema e também esteve no debate da ABP. Ele se pronunciou e disse que havia chegado ao local com apenas quatro perguntas que se fossem respondidas estaria pronto para finalizar o relatório, mas sairia do evento com mais perguntas do que respostas. Em sua visão, ao menos houve um consenso de que o Canabidiol e de que outras substâncias processadas em laboratórios farmacêuticos podem ser utilizadas para a redução do sofrimento em algumas doenças, mas não houve o mesmo com relação à maconha fumada para fins medicinais.
Cristóvam ainda mencionou que seríamos não mais Homo sapiens, mas “homo químicos”, e citou uma frase que teria ouvido de um coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro: “Mais importante do que impedir a droga de chegar aos jovens é impedir os jovens de chegar às drogas. Para impedir a droga de chegar aos jovens a gente usa a polícia, para impedir os jovens de chegar às drogas a gente usa a escola”. Assim, ele defendeu que, para lutar contra as drogas, seria necessário um sistema educacional brasileiro, nacional e de qualidade igual para todos.
Ele também defendeu que o assunto continue a ser discutido e estudado, mas que pessoas tinham que parar de morrer por falta de uma autorização à importação de remédios. “Há pessoas que matam assinando a pena de morte onde ela existe, mas há pessoas que matam por não assinar o acesso de um doente ao remédio”, finaliza.
Maconha e Epidemiologia
A planta de onde a maconha é extraída (Cannabis sativa) contém em suas folhas e flores uma resina com cerca de 60 componentes terpenofenólicos chamados canabinoides. O principal componente psicoativo presente nos extratos da C. sativa é o ?9-tetrahidrocanabinol (THC). O THC é bastante lipossolúvel e atravessa facilmente a barreira hematoencefálica.
Estudo abrangeu todas as cidades com mais de 200 mil habitantes, num total de 107 cidades, correspondendo a 47.045.907 habitantes (27,7% do total da população do Brasil). A amostra foi de 8.589 entrevistas na faixa etária de 12 a 65 anos de idade. O uso na vida, no total, exceto tabaco e álcool, foi de 19,4%, sendo a maconha a droga que teve maior uso experimental, com 6,9%, o que corresponde a 3.249.000 pessoas.
As comparações do uso na vida de maconha, nas cinco regiões brasileiras, foram semelhantes para três das regiões – Norte, Nordeste e Centro-Oeste, com cerca de 5%. A região Sul foi a campeã em porcentagens de uso na vida para a maconha, com 8,4% de usuários.
Como já observado em vários outros estudos, o uso de maconha foi maior para o sexo masculino (10,6%) quando comparado ao feminino, com 3,4%, no total e em qualquer das faixas etárias estudadas.
A dependência de maconha apareceu em 1,0% dos entrevistados nas 107 maiores cidades do Brasil, o que equivale a uma população estimada de 451.000 pessoas. A região Sul foi aquela onde apareceram as porcentagens mais expressivas de dependentes de maconha, 1,6% dos entrevistados.
A maconha teve uso na vida por 5,9% dos estudantes entrevistados. As regiões que apresentaram as maiores porcentagens de uso na vida de maconha foram a Sul, com 8,5%, e Sudeste, com 6,6%. As duas capitais com maiores uso na vida dessa droga foram Boa Vista, com 8,5% (região Norte), e Porto Alegre, com 8,3%, região Sul.
Fonte: http://www.dm.com.br/texto/196351-o-dissenso-da-maconha