A psicóloga Ana Maria e o estudante Wallace atuam em realidades diferentes. Ela no tratamento de pessoas com esclerose múltipla e ele, com usuários de crack. Saiba o que há de comum em suas experiências
A visita de um menino de 3 anos à Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM), em julho, foi motivo de comemoração para a equipe da instituição, localizada em São Paulo. A mãe do garoto chegou à ABEM aos três meses de gestação e com o diagnóstico de esclerose múltipla. Transtornada, ela apresentava alteração visual e cognitiva. A instituição acolheu a gestante, montou um plano de tratamento para o período gestacional e a futura mãe aceitou o desafio. Depois de enfrentar vários surtos da doença durante e após a gravidez, hoje ela cuida sozinha do filho e trabalha com autonomia. “Foi uma vitória de todos nós, da instituição e da paciente. Desde então, a mãe, hoje com 42 anos, continua fazendo terapia de forma contínua”, diz a psicóloga Ana Maria Canzonieri, supervisora técnica da ABEM. “A Psicologia é fundamental no tratamento para auxiliar o paciente a se compreender, a se perceber como está no contexto social e familiar e para mostrar a ele como continuar vivendo, e bem, com os recursos que tem.”
Tratamento complexo
A esclerose múltipla é uma doença desmielinizante do sistema nervoso central, crônica, progressiva e degenerativa. Após o diagnóstico, existem vários tipos de acometimentos, cuja intensidade varia de acordo com a pessoa. A doença apresenta diversos sintomas, como neurite óptica, diplopia, cegueira parcial, problemas motores, cognitivos, perda da fala, da capacidade de andar, alteração de memória, do pensamento e da atenção. O grande desafio para as/os psicólogas/os nesse tipo de tratamento é que a pessoa pode apresentar um ou todos esses sintomas juntos, e eles podem mudar de uma hora para outra. Outro complicador, segundo a psicóloga, são os usuários que apresentam vivências de depressão anteriores ao diagnóstico da doença. Alguns remédios indicados para a esclerose múltipla também podem acentuar o sintoma depressivo preexistente. Esses indicadores são fundamentais para a prescrição correta do tratamento. O estresse e a tensão emocional colaboram para a pessoa “se afundar”, segundo Ana Maria. Por ser uma doença autoimune, explica ela, o sistema imunológico trabalha inversamente proporcional ao estado de estresse. “Quanto mais tenso ele estiver, agressivo, revoltado e negar a doença, pior ficará o seu estado. Por isso o atendimento psicólogo é importante na conscientização da doença, tanto para o paciente quanto para seus familiares.” Segundo ela, a atuação da/do psicóloga/o no tratamento é necessária desde o diagnóstico para o trabalho com a pessoa, seus familiares e demais profissionais da área da saúde ser bem desenvolvido.
Trabalho multidisciplinar
O tratamento da esclerose múltipla requer o envolvimento de equipe multidisciplinar. A ABEM conta com neurologista, psiquiatra, psicóloga/o, psiquiatra, assistente social e fisioterapeuta para atender a pessoas de todas as idades. A incidência maior da doença se dá em pessoas de 20 a 40 anos. O processo de trabalho começa com o acolhimento do paciente, feito por uma/um psicóloga/o e assistente social. A pessoa atendida deve levar o laudo de um neurologista, atestando o diagnóstico da doença. “Sempre pedimos para um familiar acompanhar a pessoa para observarmos como a família está recebendo a notícia”, diz Ana Maria. Nesse momento, a/o psicóloga/o aplica alguns testes psicológicos para mapear características cognitivas e da personalidade da pessoa. Ana Maria explica que essa avaliação inicial é importante porque as pesquisas indicam maior incidência de casos de transtornos mentais em pessoas com esclerose múltipla quando comparado com a população em geral. “Por isso, precisamos mapear desde o início para saber como está o quadro.” Depois dos testes, ele será encaminhado para um neurologista, que indicará as melhores atividades para o seu caso, e à fisioterapia, neurovisão e Psicologia. Devido à complexidade que envolve a doença, a/o psicóloga/o precisa conhecer e entender a linguagem dos outros profissionais que atuam no tratamento da esclerose múltipla. Segundo Ana Maria, a ABEM desenvolve um trabalho coeso e igualitário de papéis, em que o requisito é todos se ajudarem. “Aqui o trabalho é interativo, todos têm que se dar bem. Esse é o diferencial do atendimento junto ao paciente.”
Formas de abordagens
São várias as abordagens psicológicas no atendimento. Ana Maria se encarrega dos casos individuais, com pessoas que têm dificuldade de relação consigo próprios e com a família. Outra intervenção, de caráter cultural, é desenvolvida a partir de conteúdos que emergem do trabalho com grupos. O conteúdo levado pelas pessoas é transformado em arte. Segundo Ana Maria, a técnica é uma forma de elas expressarem o alívio e o sofrimento com a doença. Nesse caso, a maioria dos participantes é de jovens na faixa de 30 anos. Dos encontros da terapia cultural nasceram respostas positivas como teatro interativo, apresentações musicais, autoria de letras de música e, ainda, volta ao trabalho e aos estudos de pessoas em tratamento. Os familiares e cuidadores também são acolhidos com atendimentos semanais por meio do Programa de Atendimento à Família e ao Cuidador, que conta com uma equipe de quatro psicólogas/os para atendimentos individuais. “Além dos familiares, os cuidadores também têm a oportunidades de falar sobre a sua relação com as pessoas atendidas, suas angústias e demandas. Muitas vezes, o papel de paciente e de cuidador se misturam. Por isso é importante acolher também o profissional que é tão próximo dessa pessoa”, explica Ana Maria.
Família também é impactada
Segundo Ana Maria, o diagnóstico de esclerose múltipla impacta fortemente a estrutura da pessoa: sua vida profissional, familiar e perspectiva de futuro. Dependendo de como ela está física e psiquicamente desde que a doença se manifestou, a família pode ser afetada pelo receio de que não poderá mais andar, de que terá que se aposentar e que seu quadro não melhorará. Esses medos são comuns à pessoa em atendimento. Portanto, a/o psicóloga/o que atua com esclerose múltipla precisa desenvolver um visão ampla da área da saúde e exercitar sua capacidade de observação. Segundo a psicóloga da ABEM, é importante o profissional ter tido experiência anterior na área da saúde e com os saberes do campo da Psicologia da Saúde ou Hospitalar. Além disso, deve ter um olhar humanista nos atendimentos clínicos para acolher os familiares próximos do usuário com muita atenção e cuidado, entendendo o sofrimento familiar mas também, e fundamentalmente, sendo capaz de fazer com que se reflita sobre as próprias possibilidades de auxiliar no tratamento. Entre as atribuições dessas/es psicólogas/os, está também a de fazer relatórios com registros das terapias e atividades desenvolvidas, que abastecem de informações o prontuário de cada pessoa atendida pela instituição. “O neurologista, o psiquiatra e demais membros da equipe acompanham de perto – e com muita atenção – o trabalho psicológico, que contribui para aumentar o conhecimento sobre a pessoa e levar bem estar a ela.”
Acolhimento nas ruas
O trabalho de acolhimento também faz parte da rotina do estudante de Psicologia Wallace Osti e Silva, educador social do Centro de Apoio e Solidariedade à Vida (CASI), organização não governamental de Piracicaba. Wallace trabalhou durante um ano e meio no projeto Sangue Bom, voltado à prevenção de doenças transmissíveis, como HIV e hepatite, entre pessoas em situação de rua e usuários de crack. Ele conta que o primeiro desafio ao trabalhar com esse público é o de fazer a aproximação. Segundo relata, é preciso chegar aos poucos, pedir licença e esperar que a pessoa se manifeste. “O principal é escutar, ouvir o que estão passando na rua”, afirma. Wallace acredita que o vínculo se forma com mais facilidade quando o educador social pertence à comunidade ou tem uma linguagem próxima da fala cotidiana das pessoas que atende. O conhecimento sobre drogas e seus efeitos também são apontados pelo estudante como instrumentos importantes para fazer o trabalho de educador social. A informação, diz, amplia o olhar, desconstrói o preconceito. “É preciso ter um olhar menos moralista e condenatório”, afirma.
Ações práticas
Durante as visitas que faz nas praças centrais de Piracicaba e nos bairros distantes, Wallace tem a companhia de outro educador social. Enquanto um deles se aproxima e conversa com a pessoa, o outro registra impressões sobre o encontro. “Nosso papel não é julgar a pessoa por ser usuária de crack, mas orientá-la para reduzir os danos causados pela droga”, explica. Uma recomendação é que não compartilhe o cachimbo usado para fumar o crack, “porque ele esquenta, queima e machuca a boca, podendo ser foco de transmissão de doenças”. Como o trabalho é orientado pela redução de danos, Wallace diz que não é seu papel convencer os usuários a abandonar a droga ou a aceitar uma internação para tratamento. O educador social já fez encaminhamentos de usuários ao Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSAD), mas viu muitos voltarem para a rua. Assim como acompanhou casos em que a família resgatou a pessoa e a levou novamente para o convívio familiar ou para um centro de tratamento. “Alguns somem e quando perguntamos por eles ouvimos que foram presos”, conta o estudante. Wallace conta ter formado algumas convicções no trabalho com pessoas em situação de rua e usuários de drogas. “Elas deveriam ter sido olhadas e acolhidas antes de chegarem à condição em que se encontram.” O estudante de Psicologia diz que aprendeu lições preciosas para a vida atuando como educador social. “Para onde eu for, levarei esse olhar para o outro.” Em ambos os trabalhos, o acolhimento é condição essencial para o cuidado a ser promovido ao usuário. É preciso escuta e acolhida a seu sofrimento, e às suas necessidades, para com ele traçar novas trajetórias.
Fonte: Conselho Regional de Psicologia SP – Revista Psi, n° 184 – Agosto/Setembro 2015