Mulher trabalha em plantação de maconha para fins medicinais. / M. K. (AFP) Milhares de anos depois das primeiras referências históricas do consumo de maconha, o potencial médico da cannabis continua pouco explorado. Isto se deve à falta de conhecimento básico. Há apenas 25 anos foi descoberto o sistema endocannabinoide, uma extensa rede de comunicação entre os neurônios e outras células do sistema nervoso central, cujo funcionamento é modulado pelas principais substâncias ativas da cannabis. O próprio organismo gera variantes endógenas desses compostos para regular funções cerebrais fundamentais, como o comportamento, a memória e a dor. Agora, o desafio é transformar os cannabinoides em fármacos mais eficazes contra uma gama cada vez mais ampla de doenças – dos tumores mais agressivos à epilepsia. “Por um lado, temos uma substância que foi consumida durante séculos, mas cujos efeitos foram comprovados em muito poucos estudos clínicos com pacientes”, explica Rafael Guzmán, diretor de um grupo de pesquisa sobre cannabinoides na Universidade Complutense de Madri. Por outro lado, diz ele, é cada vez maior o conhecimento básico sobre os seus efeitos graças aos estudos com animais e células humanas. Num desses estudos, Guzmán e outros autores demonstraram que cannabinoides como o THC, o principal responsável pelos efeitos psicoativos da maconha, reduzem o crescimento do glioblastoma, um tumor cerebral muito agressivo e difícil de tratar. “Há muito boas evidências de que a cannabis pode eliminar o câncer em células humanas e de camundongos, mas ainda há poucas provas sólidas de que faça isso em pessoas”, reconhece. Sua equipe colabora com um estudo clínico do Reino Unido que verifica a eficácia do Sativex, um fármaco que contém os dois principais compostos da cannabis (THC e cannabidiol, ou CBD), para pacientes cujos tumores ressurgiram após a cirurgia. O medicamento é administrado junto com a quimioterapia convencional. “Em alguns meses”, explica Guzmán, sua equipe espera começar o primeiro ensaio clínico na Espanha para avaliar a efetividade conjunta como tratamento de primeira linha em pacientes com glioblastoma. Segundo Guzmán, que preside a Sociedade Espanhola de Pesquisas sobre Cannabinoides, “estamos vivendo um boom” na investigação sobre os novos usos dos cannabinoides. Eles têm sido promovidos, em parte, pelas experiências pessoais de pacientes ou familiares que usam maconha para aliviar seus sintomas. A aplicação mais destacada é a do CBD para reduzir o número de ataques epiléticos em crianças com síndrome de Dravet. Sua eficácia já está sendo testada em ensaios clínicos. Os tratamentos já aprovados desses compostos contra os espasmos da esclerose múltipla, e contra a dor e as náuseas no câncer, também começaram a partir de relatos de pacientes que usavam maconha. “Os receptores de THC estão entre os mais abundantes do cérebro. São mais numerosos que os de dopamina ou serotonina, e por isso têm grande potencial para novos fármacos”, diz Rafael Maldonado, da Universidade Pompeu Fabra de Barcelona. Uma das barreiras para transformar a maconha em medicamento são os efeitos psicoativos. Sua equipe conseguiu, pela primeira vez, dissociar os efeitos terapêuticos do THC dos alucinógenos. O objetivo da pesquisa, realizada em camundongos e recentemente publicada na revista PLoS Biology, é buscar fármacos contra a dor que não provoquem perda de memória ou alterações de comportamento. Alzheimer O trabalho descreve um peptídeo (uma proteína de tamanho pequeno) que, administrado a roedores, bloqueia grande parte dos efeitos “indesejáveis” da maconha, conservando suas outras funções analgésicas. “No momento, tudo leva a crer que esse mesmo composto seria inócuo em humanos”, afirma. Sua equipe integra o consórcio europeu Neuropain, que dispõe de 6 milhões de euros (20,4 milhões de reais) para procurar novos usos dos cannabinoies contra a dor neuropática, que surge após a alteração de nervos pelo câncer ou outras doenças e que não responde bem aos analgésicos. O referente mais comum, explica Maldonado, são os casos em que um membro amputado continua doendo. A maconha ainda é um buraco sem fundo para as pesquisas biomédicas. Tanto que muitos cientistas já nem pensam nela. Acredita-se que haja entre 60 e 90 cannabinoides, muitos deles ainda sem explorar e que deveriam ser incluídos em “quimiotecas” para o seu estudo. “Ultrapassamos a maconha. Hoje, o campo de pesquisa é infinitamente mais amplo e deveria deixar de estar vinculado a ela”, explica Javier Fernández-Ruiz, catedrático de bioquímica da Universidade Complutense de Madrid e membro do Centro de Pesquisas Biomédicas em Rede de Doenças Neurodegenerativas. Os cannabinoides podem ser um bom aliado na guerra contra Alzheimer e Parkinson – as “doenças típicas do século XXI” devido à longevidade cada vez maior da população, explica Fernández-Ruiz. O passar do tempo faz com que o cérebro perca neurônios, e grande parte deles não é reposta. Isto se deve a múltiplos fatores, como a oxidação e a falta de irrigação vascular. “Os cannabinoides parecem ser capazes de corrigir vários desses problemas ao mesmo tempo”, diz Fernández-Ruiz. Seu próximo projeto é um estudo em cães que sofrem de uma doença parecida com a esclerose lateral amiotrófica (ELA) para testar o efeito do THC e do CBD. Todos os especialistas consultados pedem muita cautela quanto a essas linhas de pesquisa. “Estou certo de que haverá no futuro um medicamento contra tumores cerebrais baseado em cannabinoides, mas os pacientes atuais não poderão se beneficiar deles”, adverte Fernández-Ruiz. Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/15/internacional/1436976665_397370.html