Tratamento experimental freia esclerose múltipla

POR SÉRGIO MATSUURA

Terapia com células-tronco é esperança no controle da doença

RIO – A esclerose múltipla é uma doença neurológica crônica debilitante, sem cura, que exige tratamento medicamentoso por toda a vida, mas uma terapia experimental com células-tronco pode mudar esse quadro. Uma equipe internacional liderada por Richard Burt, da Universidade Northwestern, em Chicago, realizou um dos primeiros estudos clínicos randomizados com uma técnica que usa transplantes dessas células em comparação com os tratamentos convencionais hoje disponíveis, e os resultados foram promissores: apenas três, de um grupo de 52 pacientes, apresentaram alguma piora em seu quadro três anos após o procedimento, contra 30 de 50 (60%) do grupo de controle.

— Eu não uso a palavra cura. Isso seria prematuro — pontua Richard Burt, ressaltando que os detalhes da pesquisa não podem ser divulgados porque ela ainda não foi publicada em um periódico científico. — Nós não estamos tentando regenerar os neurônios. O que tentamos é fazer com que o sistema imunológico pare de atacar o cérebro para permitir que ele se recupere.

Brasil tem 35 mil casos

De acordo com o último Atlas da Esclerose Múltipla, divulgado em 2015 pela Federação Internacional de Esclerose Múltipla, existem no mundo 2,3 milhões de pessoas com a doença, sendo 35 mil casos no Brasil. Basicamente, nos pacientes com a enfermidade os linfócitos T, um tipo de célula de defesa do organismo, identificam a mielina — membrana que envolve os neurônios — como um corpo estranho, como um vírus invasor, dando início ao ataque do sistema imunológico contra o próprio cérebro. Essa ação desencadeia processos inflamatórios, gerando lesões.

Com a destruição da mielina, a condução dos impulsos nervosos fica debilitada, gerando sintomas diversos que dependem do local afetado. A fadiga é um dos sinais mais comuns da doença, mas os pacientes também podem apresentar alterações na fala e deglutição, transtornos visuais, problemas de equilíbrio e coordenação motora, dores, transtornos cognitivos, emocionais e sexuais.

O tratamento experimentado por Burt visa cessar o ataque do sistema imunológico às células cerebrais com uma abordagem radical: sua destruição e reconstrução. A terapia começa com a coleta de células-tronco hematopoiéticas — capazes de se diferenciar em todas as células do sangue, incluindo as de defesa do organismo — do paciente, que ficam armazenadas. Depois disso, medicamentos quimioterápicos potentes são ministrados para a remoção total do sistema imunológico da pessoa, cessando a inflamação no cérebro. Então, as células-tronco hematopoiéticas coletadas são reinjetadas no paciente, para que elas reconstruam o sistema imunológico.

— Quando você para a inflamação e permite que um novo sistema imunológico seja construído, num ambiente de tolerância àquela inflamação, as células de defesa param de atacar o cérebro — explica o cientista. — Basicamente, nós damos ao paciente uma medicação para derrubar o sistema imunológico e as células-tronco o reconstroem. Não há mais tratamento após isso. E a maioria das pessoas respondeu muito bem, sem atividade da doença.

Os cerca de cem pacientes do estudo foram recrutados em hospitais universitários em Chicago, nos Estados Unidos; em Sheffield, na Inglaterra; em Uppsala, na Suécia; e em São Paulo. O estudo já foi concluído, mas aguarda revisão para publicação em periódicos científicos, o que deve acontecer até o meio deste ano. Alguns dados, no entanto, já foram divulgados na semana passada, durante encontro anual da Sociedade Europeia para o Transplante de Medula Óssea, realizado em Lisboa, onde o trabalho de Burt e seus colegas foi premiado.

Segundo os pesquisadores, no primeiro ano após o procedimento, nenhum dos pacientes que passaram pelo transplante de células-tronco apresentou sinais de intoxicação ou morreu. E apenas um sofreu com a piora dos sintomas, contra 39 entre os que continuaram apenas com a medicação. Após três anos, cerca de 60% dos pacientes que seguiram com o tratamento convencional apresentaram pioras em seus quadros, contra apenas 6% — três casos — entre os que realizaram o transplante.

— Esses resultados preliminares de um dos primeiros ensaios clínicos bem controlados são emocionantes — comentou Bruce Bebo, vice-presidente de Pesquisa da Sociedade Nacional de Esclerose Múltipla dos Estados Unidos. — Esse teste soma-se a um crescente corpo de conhecimento que está ajudando a definir os riscos e benefícios precisos do transplante de células-tronco hematopoiéticas e quem pode se beneficiar dele.

Lesões não podem ser revertidas

Maria Carolina de Oliveira Rodrigues, professora do Departamento de Clínica Médica da USP em Ribeirão Preto, explica que a técnica não é recomendada a todos os pacientes, pela toxicidade e agressividade da quimioterapia. Contudo, para casos mais graves ou que não respondam aos tratamentos convencionais, o transplante pode ser a solução.

— Já temos muita experiência, no Brasil e no mundo, com esses transplantes de células-tronco para doenças autoimunes. Estima-se que mais de 3 mil transplantes desse tipo já tenham sido realizados ao redor do mundo, cerca de 300 a 400 só no Brasil — aponta Maria Carolina, que fez parte da equipe de Burt no estudo. —Estamos na fase em que, para algumas doenças, como a esclerose múltipla e a esclerose sistêmica, já é possível indicar o transplante como tratamento padrão.

Segundo a pesquisadora, não se trata da cura, mas do “controle da atividade da doença”. Dessa forma, é importante que os pacientes passem pelo transplante ainda nas fases iniciais da doença, enquanto há inflamação no sistema nervoso. Nas fases adiantadas, as lesões já foram formadas e não podem ser revertidas. Ao ser reiniciado, o novo sistema imunológico deixa de atacar as células e os tecidos do próprio paciente. Quando isso acontece com sucesso, o cérebro deixa de ser agredido. Não há progressão da doença, mas muitas vezes ficam as sequelas.

— Os estudos mais recentes têm mostrado que pacientes transplantados nas fases mais precoces da doença têm desfechos muito melhores, com maior controle dos sintomas e menos incapacidade neurológica ao longo do tempo — destaca Maria Carolina. — Esses últimos estudos têm comparado o transplante com drogas rotineiramente usadas para o tratamento da esclerose múltipla, mostrando que o transplante é muito superior. Além disso, o transplante é realizado uma só vez, enquanto essas medicações de rotina precisam ser usadas durante anos, às vezes pela vida toda.

Leia mais: https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/tratamento-experimental-freia-esclerose-multipla-22542275#ixzz5BjYkB8EO
stest