O PAPEL DA ESPIRITUALIDADE E DA RELIGIOSIDADE NA REABILITAÇÃO EM DEFICIÊNCIAS FÍSICAS
Marcelo Saad – Médico Fisiatra e Acupunturista, Doutor em Ciências da Reabilitação pela UNIFESP, membro fundador da Coalizão Inter-Fé em Saúde e Espiritualidade. www.msaad.org
Espiritualidade e Religiosidade: Enfrentamento e Transcendência
Pacientes em processo de reabilitação muitas vezes estão em uma crise física, emocional e espiritual. As questões de dor, de luto pela perda de uma parte do corpo ou do nível de função, e questões sobre o valor da vida em uma nova circunstância difícil são situações comumente encontradas por pessoas neste cenário. Indivíduos com bem-estar espiritual tendem a enfrentar situações adversas com mais sucesso. As crenças espirituais são uma força estabilizadora para pessoas com deficiência e suas famílias.
O enfrentamento religioso (“religious coping”) é o uso de crenças ou práticas religiosas para reduzir ou tornar mais suportável o sofrimento emocional causado por perdas ou por mudanças de vida. Crenças e práticas religiosas são utilizadas para regular a emoção em circunstâncias que estão fora do controle dos pacientes. O enfrentamento religioso afeta a reação da pessoa com os eventos estressantes trazendo significado, controle, conforto ou transcendência.
A religião não impede o sofrimento causado pela doença, porém atribui significado a ele e traz elementos que ajudam na aceitação e na adaptação a uma nova condição física, emocional e social. A religião envolve instâncias profundas e emotivas do ser humano, e representa um fator poderoso que influencia a adaptação a doenças, decisões médicas, crenças de saúde e comportamentos. A estratégia de enfrentamento pode determinar qual impacto isto pode ter sobre a qualidade de vida.
O uso de crenças espirituais pode ser ainda mais importante em doenças incapacitantes. A religião e a espiritualidade são importantes estratégias de enfrentamento para pessoas com deficiência. O sistema de crenças espirituais pode desempenhar um papel direto nos resultados em reabilitação. O bem-estar espiritual pode colaborar com ajustes às mudanças de vida e saúde emocional, com potencial para apoiar o processo de reabilitação. Ao contrário, o sofrimento espiritual pode interferir com a aderência ao tratamento e adaptação à deficiência.
A religiosidade e espiritualidade podem ser fontes subutilizadas no processo reabilitacional e no seguimento da vida de pessoas com deficiências. Existem evidências sobre o papel positivo da espiritualidade e da religiosidade no processo de reabilitação e na vida das pessoas com deficiência. Facetas específicas do sistema de crenças religiosas e espirituais (como a conexão individual a um poder superior) desempenham papéis diretos e únicos no prognóstico de desfechos em reabilitação, como um preditor robusto de resultados.
Visões de doença e incapacidade estão entrelaçadas com as crenças religiosas ou espirituais. Neste sentido, a religião pode trazer para o paciente uma estrutura para dar um sentido à sua doença, recursos práticos e esperança. A crença pode mobilizar recursos internos e iniciativas positivas, com potencial para melhorar a qualidade de vida, o que tem repercussões significativas sobre o processo reabilitacional. As emoções, crenças e ações associadas com a espiritualidade têm uma influência positiva sobre a saúde física e o bem-estar psicológico.
Crenças espirituais podem ajudar na criação de um sentido de controle para a compreensão, o enfrentamento e a interpretação de eventos de vida. Para muitas famílias de crianças com deficiência, a espiritualidade e a religião desempenham um papel importante em suas vidas. Eles se voltaram para a sua espiritualidade e fé para encontrar significado e propósito na vida e se juntaram a comunidades religiosas como uma forma de compartilhar e desenvolver sua espiritualidade com os outros.
Sistemas de crenças religiosas podem promover a aceitação e ajudar as famílias a dar sentido à deficiência. No entanto, os familiares podem experimentar a percepção de fracasso religioso ou punição por alguma má conduta. Nos cuidadores de pacientes com deficiências, há uma relação inversa entre bem-estar espiritual e sobrecarga do profissional. Os cuidadores também relatam o uso frequente de atitudes ou práticas como orar e ir à igreja. Isto apoia a espiritualidade do processo de cuidar e impacta nos resultados do cuidado.
A comunidade religiosa pode fornecer apoio em diversas formas, como: proteção das pessoas contra o isolamento social; garantir e fortalecer redes familiares e sociais; fornecer ao indivíduo um sentido de auto-estima e de pertencer a algo; oferecer conforto espiritual em momentos de adversidade.
Uma Nova Área para o Processo Reabilitacional
A interface entre espiritualidade e deficiência é uma área de pesquisa relativamente nova, porém em crescimento. Finalmente, o último tabu está sendo quebrado, após debates em assuntos como sexualidade e abuso de substâncias entre portadores de deficiência. A espiritualidade é um elemento frequentemente esquecido na avaliação e nos e cuidados ao paciente. Abordar e apoiar a espiritualidade dos pacientes pode promover a saúde, diminuir a depressão, ajudar o paciente a lidar com uma doença difícil, e até mesmo melhorar alguns desfechos. A Medicina de Reabilitação, que foi pioneira na abordagem multidisciplinar centrada no paciente, é bem adequada para integrar a mente, o corpo e o espírito na assistência ao paciente.
O primeiro passo seria uma ampla discussão sobre o sofrimento, que englobe não só os aspectos psicológicos e socioculturais envolvidos, como também os aspectos espirituais. Para o paciente incapacitado, o sofrimento espiritual pode ser o problema que mais demanda suporte, interferindo sobre o desfecho das intervenções. O sofrimento espiritual não identificado frequentemente é o culpado em um plano de reabilitação mal sucedido. Pacientes com deficiências instaladas na infância ou na fase adulta percebem e experimentam diferentemente a espiritualidade. Assim, abordagens diferentes de espiritualidade precisam ser empregadas para cada grupo.
É o momento de expandir a filosofia da reabilitação e investigar intervenções além da cura do corpo para a cura do espírito. Deve-se sempre procurar a congruência entre as crenças do paciente e o cuidado oferecido pelo serviço de saúde. A instituição de reabilitação deve conhecer e proteger os valores culturais e as crenças do paciente, preparar os profissionais para respeitá-los e direcionar seus procedimentos considerando esta dimensão.
A esclerose múltipla é uma doença complexa, sem causa conhecida, com sintomas invisíveis e variáveis, curso e tratamento indefinido. Diante de tantas incertezas as crenças religiosas vão preenchendo lacunas que são deixadas pela ciência e trazem respostas e significados a perdas, tornando-se elemento chave a adaptação a uma nova realidade.
Concluindo, pessoas com uma deficiência são indivíduos integrais que tem o direito de explorar e expressar a espiritualidade ao potencial humano mais pleno. Assim, as ciências da reabilitação devem evoluir para incluir uma abordagem religiosa-espiritualista