A idade do amor

Chovia forte quando perceberam que não eram mais os mesmos. Defrontaram-se no corredor, um saindo do quarto a caminho da sala, o outro no sentido oposto. Olhavam-se, quase sem acreditar, enquanto se sentiam arrancados bruscamente da densa trama da senda de todos os dias. Mas nada havia mudado. Por que só agora haviam percebido? Seria o amor de tantos anos o responsável pela distorção dos sentidos, a ponto de conduzi-los a um estado de alheamento perante a dureza das formas?

Os vidros da janela da sala eram fustigados pelos pingos grossos e pesados da chuva. O som do crepitar das águas era a melodia ruidosa que embalava a causalidade cinzenta de mais um dia de rotina naquela casa. Mas por que, após aquele pausado encontro de olhar, carregavam, nesse dia, um ar de dignidade ofendida? Era como se ambos estivessem nus diante da verdade que os habitava. Perguntaram-se, de modo silente, e não sem pesar, se o coração suportaria tanta lucidez; questionaram-se, intimamente, se as lembranças os havia enganado, ou, se fora o tempo, em sua falta de escrúpulos, o escultor de cada ruga na pele envelhecida do outro.

Presumiram então, com a ingenuidade das idades avançadas, que a vista os traía; mas já eram tantos médicos… mais um? Não… melhor adaptar a visão e seguir em frente; afinal, a realidade depositara-se sem pedir licença, como um pensamento que não se pensa, fazendo sombra aos dias mortos fincados nas horas de existência já superadas; mas nessa idade é assim, não há espaço para suavidades; as verdades acontecem, e as ilusões desaparecem.

Mas concluíram, os dois, a um só tempo, que não mais suportariam a convivência; para ele, bastava o mau-humor dela, nada mais seria tolerado; para ela, a surdez dele era um fardo; e agora isso? Não! Não seriam obrigados, àquela altura da vida, a viver na resignação silenciosa de quem tudo tolera; e foi nesse momento, no etéreo instante desse pensamento, que ambos revelaram um vago ar de contentamento que por uma nesga não virou um sorriso; mas as bocas logo se fecharam na seriedade do instante. Não teriam coragem para um rompimento no fastígio da velhice; além do mais, a família e os filhos não aceitariam tal rebeldia; os velhos já haviam perdido o direito a qualquer forma de ruptura.

Amedrontaram-se, é verdade, com a extensão da coisa. Já haviam atravessado tantas barreiras; mas eram mais fluídas; essa parecia tão rígida quanto o aço, tão irreal quanto a própria morte. Verdade seja dita: o mundo nunca possuiu e nem possuirá plano estético algum; e até há um modo de viver, mais profundo, que prescinde de beleza. Mas ali não era o caso. A vida naquela casa, após a saída dos filhos, quando sobejou o casal, baseava-se em uma superficialidade medrosa e insalubre, mera refém do avançar das horas. E por isso a vergonha dos dois; uma vergonha só comparada àquela de quem acaba de acordar de um desmaio. Mas a vida é assim, uma condenação perpétua, irrevogável, um eterno morrer, enquanto vivemos, tentando, sem o despudor de nossa incapacidade de compreensão, alcançar o tempo que nos rodeia, aspirando a uma paz que não pode ser nossa, a uma verdade que se encontra no que não poderemos compreender.

Esforçaram-se, é verdade; franziram os cenhos, os dois; pareciam duas páginas que foram viradas juntas, de algum livro que se encaminhava para o final; e compreenderam, de modo suave, que os acidentes do tempo, sem nenhuma solenidade pretensiosa, e sob a narcose da rotina, apenas obedecem à natureza. As coisas são assim, uma verdade amarga, sorvida a conta-gotas, para não doer, e para permitir que encontremos, em um lago azul e em um pedaço de céu, uma vida que possa ser organizada pela esperança.

E foi assim, sem exagero nas tintas, e libertos de toda sorte de entulho mental, que entenderam que o amor também envelhece; e que o amor também cai, como tudo, no abismo interminável do tempo; mas também perceberam, num átimo, que, por terem mergulhado, nesse abismo, juntos e de mãos dadas, construíram uma história; nem mais bonita ou mais feia que as demais, mas a história dos dois, um mero ondular de água, produzido pela brisa suave do vento, em meio à vastidão infinita do oceano e do mundo.